Discurso da Presidente do IESBA, Gabriela Figueiredo Dias, XV Congresso da OROC - Ordem dos Revisores Oficiais de Contas | English version available
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Excelentíssimo Bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas,
Distintos convidados, Senhoras e Senhores,
É um grande prazer juntar-me a vós hoje – ainda que, infelizmente, não possa estar presencialmente, como muito gostaria, na bela cidade do Porto.
Permitam-me começar por agradecer à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, na pessoa do seu Bastonário, Dr. Virgílio Macedo, o amável convite; e por felicitar a OROC pelo programa rico e oportuno que concebeu e que nos junta aqui hoje.
É um privilégio poder fazer parte desta importante conversa.
Senhoras e Senhores,
Permitam-me refletir sobre três grandes desafios que estão a transformar a atividade de auditoria.
Em primeiro lugar, o atual contexto geopolítico está a atuar como um verdadeiro teste de stress aos alicerces da ética em todas as profissões.
Estamos a passar de uma fase de expansão regulatória - que começou com todo o reforço pós-grande crise financeira e, mais recentemente, abrangeu áreas como a tecnologia e a sustentabilidade - para um período que está a ser marcado, cada vez mais, pela simplificação, desregulação, aligeiramento da supervisão e fragmentação a nível global.
Esta mudança está a moldar narrativas que questionam o valor da ética, das estratégias com horizontes de longo prazo e das regras de boa governação.
Algumas organizações - incluindo empresas - defendem que a ética, o foco na sustentabilidade de longo prazo e uma abordagem multidimensional à governação foram longe demais e sao hoje um fardo. Para os que assim pensam, esta é uma oportunidade para eliminar quaisquer “amarras” que limitem ou atrasem a capacidade de gerar lucro.
Estas dinâmicas não são abstratas. A fragmentação dos mercados de capitais e das abordagens regulatórias é uma realidade tangível, reforçada por estratégias nacionais e regionais divergentes. E a fragmentação, como sabemos, pode enfraquecer práticas consistentes de regulação, governação e supervisão.
Vivemos, assim, um período de intensa experimentação de políticas. Muitas decisões estão a ser tomadas cujas consequências só o tempo revelará na totalidade – e algumas até avançam em direções opostas.
Vejamos o caso da Europa. A chamada Diretiva “Omnibus” de Sustentabilidade procura simplificar, mas arrisca enfraquecer o impulso de transparência e de responsabilização construído através da CSRD.
Ao isentar quase 80% das empresas que inicialmente se esperava que reportassem, esta alteração pode corroer a confiança e reduzir o fluxo de informação de que dependem investidores, reguladores, o sistema financeiro (designadamente bancario) e a sociedade de forma mais geral.
Ao mesmo tempo, como anunciado em Lisboa no mês passado, durante a primeira Conferência do IESBA, a Comissão Europeia decidiu avançar com uma consulta pública sobre formas de reforçar a coerência da supervisão da auditoria e avaliar o equilíbrio entre a discricionariedade nacional e a convergência com um objetivo claro: reduzir a fragmentação e melhorar a eficiência.
Vivemos, portanto, tempos desafiantes e incertos.
A simplificação é muito bem-vinda, mas não pode tornar-se diluição. A clareza e a eficiência devem fortalecer - e não substituir - a responsabilidade ética. É importante que, ao decidirmos hoje, não percamos o foco na cooperação e no sucesso sustentável dos negócios e das organizações.
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O segundo grande desafio de que vos quero falar é o impacto profundo da inteligência artificial e dos desenvolvimentos tecnológicos.
As firmas de auditoria estão profundamente focadas no potencial transformador da IA, procurando acompanhar o ritmo de todas as formas possíveis – por vezes com dificuldades em compreender e gerir plenamente as suas consequências.
Dada a dimensão da mudança e a velocidade a que está a ocorrer, essas dificuldades são normais.
Mas o sucesso não se vai medir apenas pela mera adoção da IA ou de outras tecnologias. De facto, mesmo que consigam vencer o desafio tecnológico, falharão se não conduzirem em paralelo a transformação ética, cultural e de governação que esta nova realidade exige. Só avançando em ambas as frentes – tecnológica e ética – é que a inovação poderá gerar sucesso sustentável.
A IA levanta questões éticas profundas, afetando princípios fundamentais do Código do IESBA – integridade, objetividade, competência profissional, confidencialidade e comportamento profissional.
É, pois, fundamental que as organizações criem um ambiente que permita aos profissionais exercer um julgamento sólido, com uma liderança exemplar, clara responsabilização e recursos dedicados à ética.
A IA está também a acelerar uma mudança estrutural e estratégica dentro das firmas. A crescente presença de investimento de private equity nas firmas de contabilidade e auditoria, permitindo os vultuosos investimentos necessarios para garantir a capacitacao tecnologica das firmas, introduz novos riscos éticos para os profissionais e novas ameacas a independencia das firmas, exigindo sistemas de governação robustos que sejam capazes de resistir e responder às disrupcoes e ameaças que acompanham as mudanças nos modelos de propriedade,de negócio e de operacao das firmas.
Falo-vos de riscos, mas a IA, a tecnologia e a atração de capital externo trazem também oportunidades extraordinárias.
Os profissionais de auditoria e contabilidade estão numa posição única para garantir que estas ferramentas servem o interesse público, aplicando o seu julgamento profissional e o seu domínio dos princípios éticos para orientar a sua utilização responsável.
Em suma, geopolítica, tecnologia e cultura são forças convergentes. Não devem, por isso, ser vistas como ameaças que nos bloqueiam. As pressões geopolíticas, tecnológicas e económicas podem atuar como catalisadores que impulsionam a transformação - e até a reinvenção - das firmas e dos profissionais. Uma transformação que tera de ser suportada por culturas organizacionais adequadas.
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E assim chegamos a ao terceiro desafio - talvez o mais essencial: a necessidade de cultivar culturas éticas adequadas face as transformacoes formidáveis que enfrentamos.
Para qualquer empresa de auditoria, a sua cultura ética determinará, em última análise, o seu sucesso ou o seu fracasso, dependendo de como clientes, colaboradores, reguladores, investidores e o público em geral a percebam como confiável e respeitável.
As culturas mais fortes são aquelas em que a ética está integrada nas práticas de liderança e sustentada por mecanismos eficazes de governação. Os valores, por si só, não bastam; a governação é a arquitetura que sustenta a ética. Sem ela, os valores permanecem apenas intenções.
É por isso essencial que as firmas utilizem todos os recursos disponíveis para construir, avaliar e reforçar continuamente a sua cultura ética.
Isto significa ligar avaliações de desempenho, promoções e nomeações de liderança ao comportamento ético - demonstrando que os valores, e não apenas os resultados, também contam.
Significa promover conversas abertas entre líderes e equipas, em todas as linhas de serviço, nomeadamente criando um ambiente de segurança psicológica que permita identificar e levantar preocupações ou falhas éticas precocemente. Esta é a melhor forma de evitar crises.
E significa lembrar que a cultura não vive em códigos ou slogans. A cultura é o que as pessoas fazem quando ninguém está a ver, de uma forma intituiva e plenamente incorporada nas praticas e nas decisoes. E aí que a ética verdadeiramente habita.
Importa também reconhecer que a cultura ética não depende apenas do “tom vindo do topo”, mas também dos ecos vindos do meio da organização. Os gestores intermédios têm um papel vital: moldam comportamentos através do exemplo e da proximidade diária com as equipas.
A relevância do tema reflete-se no plano de trabalho do IESBA, através de um importante projeto sobre Cultura e Governação nas Firmas.
O seu primeiro resultado será um conjunto de princípios de alto nível, orientados para resultados, que abordarão oito elementos centrais necessários para construir e manter uma cultura ética e uma boa governação nas firmas de auditoria.
Estes princípios terão como objetivo apoiar as firmas no desenvolvimento de sistemas consistentes e adaptáveis, garantindo que a ética permanece o referencial da profissão num contexto em rápida evolução.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
A ética é, por vezes, vista como um acessório – algo “bom de ter” quando o mar está calmo, mas um peso quando as dificuldades se formam.
Mas é exatamente o contrário. A ética e a independencia sao um instrumentos fundamentais para evitar crises, ou para as resolver com os menores impactos possíveis. Sao, para as firmas e os profissionais, o alicerce da credibilidade, da sustentabilidade e do sucesso duradouro. E sao ainda a marca distintiva da auditoria.
A relevância da profissão dependerá da sua capacidade de antecipar riscos éticos antes de se materializarem. No meio de toda a incerteza que vivemos, a ética é a bússola para navegar a incerteza.
Termino encorajando-nos a acompanhar de perto as próximas discussões e propostas do IESBA, nomeadamente sobre os novos princípios de cultura e governação nas firmas. O sucesso deste projeto dependerá da nossa capacidade de diálogo aberto e construtivo com todos, de forma a garantir que os princípios sejam práticos, aplicáveis e adequados à realidade.
Muito obrigado.
Gabriela Figueiredo Dias